Segunda Da Revista: Salve-se Da Hidrólise

01 ago 2022

Hoje é segunda, dia de Segunda da Revista, momento em que a gente resgata alguma matéria legal entre as nossas (até agora 16) edições da Revista SBR. O arquivo dessa semana vem da edição #3, quando desvendamos os mistérios por trás da temida hidrólise.

Hidrólise

Seus sintomas são silenciosos e difíceis de serem notados. Seus efeitos imediatos não são visíveis, mas quando suas consequências aparecem pode ser tarde demais para qualquer ação reparadora.

Por Luís Gonçalves e Ricardo Nunes

Até parece a descrição de alguma doença, e de certa maneira é, mas estamos falando da temida hidrólise, que pode muito bem ser rotulada como o câncer dos solados em poliuretano. Para evitar o problema, que se apresenta como aquele solado que, de uma hora para outra, simplesmente esfarela na sua mão, é necessário conhecer um pouco mais sobre o tipo de material de que são feitos esses solados, o que vai nos ajudar a entender como acontece a hidrólise e, com sorte, a preveni-la.

Os solados em poliuretano

O poliuretano, chamado de PU pela indústria calçadista, é um polímero composto, obtido através da reação entre um diisocianato e um poliol, material que aumenta sua resistência mecânica e assim o torna mais durável. A vantagem do uso do PU em relação à borracha, nos calçados esportivos, passa, principalmente, por sua maior leveza, o que gera maior conforto e maleabilidade. Seu principal ponto negativo é exatamente a tendência ao desgaste por hidrólise, quando exposto a certos níveis de temperaturas e umidade.

Mas, afinal, o que é, quimicamente, a hidrólise?

De maneira simples, hidrólise pode ser definida como a quebra de uma molécula devido à reação química com a água, que nem precisa aparecer na sua forma líquida, bastando ser vapor de água em um ambiente úmido. 

No caso do PU, o processo acontece nas ligações dos monômeros que formam o composto maior, o polímero, por isso pode-se dizer que a hidrólise acontece na menor cadeia do material. Daí que se entende por que os solados literalmente esfarelam durante a hidrólise: eles simplesmente ressecam (pela perda de água para o ambiente) e ‘quebram’ em partículas cada vez menores. Visualmente, o aspecto é de uma ricota, esfarelando na sua mão.

Como evitar

Raramente a água, por por si só, é capaz de reagir com um elemento de maneira a iniciar a hidrólise. Para que isso ocorra é necessário um conjunto de fatores que inclui altas temperaturas e pressão, além de algum agente acelerador – e sorte, ou a falta dela. 

Como alguns desses elementos só podem ser reproduzidos em ambiente controlado (laboratório), para nós, que acumulamos pares e pares de tênis, é necessário preocupação extra, sobretudo, com a umidade e o calor. 

Os requisitos para um armazenamento seguro de calçados com solado em PU passam por temperatura abaixo dos 30ºC e umidade relativa do ar abaixo dos 70% – condições praticamente impossíveis de serem mantidas em um clima subtropical como o do Brasil.

No caso da temperatura, em muitas das áreas do país só é possível atingir esse número através de resfriamento artificial, o que não significa que você precisa, literalmente, congelar seus pares – o que nem adiantaria, já que a hidrólise é um fenômeno químico e não biológico. 

Na prática, o ar condicionado é um aparelho que, além de diminuir a temperatura, também retira umidade do ar, mas seria pouco prático, além de oneroso, manter seus tênis num ambiente com temperatura controlada vinte e quatro horas por dia.

A medida que parece ser mais eficiente pra minimizar a aparição do problema também não é fácil: a redução e controle da umidade do ar, já que sem ela não existira a água necessária para atuar junto aos monômeros, e ao calor, danificando seu calçado. 

Isso explicaria, por exemplo, a manutenção de solados por mais tempo em climas secos do que nas cidades litorâneas.

Exatamente por isso, existe a corrente dos que preferem isolar o produto do contato com o ar, através de filmes plásticos e/ou (em casos mais extremos) fechamento a vácuo. 

No primeiro caso seria necessário checar se o filme plástico realmente não permite a passagem de ar através de porosidades. Já no segundo, é necessário garantir que o sistema tenha sido operado corretamente a fim de retirar-se todo o ar possível de dentro do invólucro. 

Em ambos os casos é precisos certificar-se de que o produto esteja seco no momento do seu armazenamento, a fim de evitar que a reação ocorra por dentro da embalagem.

Outra forma de conservação, que utiliza como princípio o controle da umidade, é o uso da sílica gel. Até a própria cadeia produtiva usa o produto quando da sua exportação, por ser fácil de encontrar e barato.

A sílica retém a a umidade do ar através da adsorção física, processo por meio do qual moléculas de água ficam retidas nos poros do dessecante e que faz necessária a troca periódica do material já saturado. 

É comum usar a sílica gel dentro de sacos do tipo ziploc ou até mesmo em conjunto com o fechamento a vácuo, assim maximizando a eficácia da prevenção da hidrólise.

Um outro ponto a se considerar é o tipo de diisocianato utilizado na produção do PU e a adição de estabilizantes na sua fórmula: se o diisocianato é do tipo MDI a resistência à hidrólise aumenta consideravelmente, entretanto seu preço também acompanha esse aumento. O mesmo acontece com os aditivos e estabilizadores.

Na prática, fica difícil saber qual foi o tipo utilizado, por exemplo, na produção do seu adorado Air Yeezy, e há até os que defendam que a indústria tem usado material de menor qualidade – e durabilidade – em busca de um maior giro na cadeia de consumo. Traduzindo: produtos que duram menos tendem a fazer você ter que compra-los mais vezes.

O cuidado com a durabilidade dos poliuretanos, e sua resistência à hidrólise, no Brasil é tomado pela ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas – que desenvolve, periodicamente, instruções normativas específicas para cada um dos diversos usos do material, o que inclui sua aplicação nas áreas superior e inferior dos calçados esportivos.

Resumo da ópera

Em síntese, a conclusão parece ser uma só: mais cedo ou mais tarde seu tênis, com solado de PU (e os de borracha estão livres dessa praga), vai sofrer de hidrólise. Triste, mas verdade.

Quão mais cedo ou mais tarde isso vai acontecer depende de fatores que podemos controlar e de outros que fogem completamente ao nosso controle.

No primeiro grupo se incluem armazenamento em ambiente seco, arejado e com temperatura amena, de preferencia com saquinhos de sílica gel por perto.

No segundo, estão as condições regulamentadas pela própria indústria, que busca materiais mais resistentes e condições que retardem ao máximo o aparecimento da hidrólise – mesmo porque a contagem regressiva para o seu surgimento começa na hora em que poliol e diisocianato são misturados e despejados sobre o molde dos solados, o que quer dizer que muitos calçados podem começar a se desfazer mesmo antes da sua venda, a depender do transporte e armazenamento, significando um prejuízo considerável.

Então use bastante os seus pares, limpe-os bem antes de guardar e aproveite enquanto a hidrólise não chega.

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