Não, A Cultura Sneaker Não Está Morrendo

EDITORIAL
15 mar 2024
Por: Douglas Prieto

A economia global vive um período de fragilidade. Enquanto a vida pós pandemia ainda traz dúvidas, conflitos geopolíticos estouram quase que semanalmente. A inflação está em alta em várias partes do mundo, cadeias de suprimentos sofrem com faltas (e com os oportunistas) e o emprego parece cada vez mais ameaçado pela inteligência artificial. O planeta, bem, não parece mais suportar por muito mais tempo o nível de exploração a que está sendo submetido.

Se o cenário macro tem traços de caos, os pequenos universos, por consequência, vivem suas agruras. É fato que o momento atual do mercado de tênis e, por consequência, todo o ecossistema cultural gerado a partir dele vive, no mínimo, um momento de profunda transformação

Praticamente todos os agentes envolvidos detectam algum problema, seja no Youtuber que desistiu dos outrora interessantes unboxings ou do CEO com a corda no pescoço cada vez mais apertada a cada novo balanço financeiro. E nunca se falou tanto sobre isso como agora – o que ajuda e atrapalha quase que na mesma proporção.

O comportamento do consumidor não é algo previsível, e isso está muito longe de ser uma novidade para qualquer segmento. No caso dos tênis, a equação ganha drama uma vez que um mesmo produto é adquirido por quem só precisa se calçar e também por aquele que idolatra o designer que o projetou ou o artista cujo nome estampa a palmilha. Públicos extremamente diferentes, buscando suprir necessidades por vezes até antagônicas. E marcas e profissionais tentando encontrar saídas, sejam elas no campo do design, criatividade e tecnologia ou em novas formas de moldar o negócio.

GRANDES PODERES, GRANDES PROBLEMAS

Comecemos, então, pelo topo – e tenhamos em mente que ele nunca pareceu tão acessível. A Nike recentemente abriu mão de funcionários de grande experiência – e agora, em 2024, anuncia 1500 demissões, o que corresponde a cerca de 2% da sua força de trabalho global. “Atualmente, não estamos tendo o nosso melhor desempenho e, em última análise, me responsabilizo junto com a minha equipe de liderança” assume John Donahoe, o CEO do Swoosh. Em um comunicado, a empresa explicou detalhou a decisão: “a Nike está sempre no seu melhor quando está no ataque. As ações que estamos a tomar colocam-nos na posição de dimensionar corretamente a nossa organização para perseguir as nossas maiores oportunidades de crescimento, uma vez que o interesse pelo esporte, saúde e bem-estar nunca foi tão forte.”

Sua antítese, a adidas, vive numa eterna novela acerca da marca Yeezy – os modelos assinados por Ye (antes conhecido por Kanye West), que até algum tempo eram o ouro das três Listras, viraram uma celeuma ética, depois das declarações anti semitas do astro; jurídica, por conta das dúvidas sobre as propriedades intelectuais, mais tarde claramente definidas como de direito da adidas; e financeiras, já que os grandes estoque existentes, se vendidos, não trarão a lucratividade de outros tempos. Se vendidos. Outra grande perda contabilizou-se após a invasão da Ucrânia – a adidas decidiu parar de fazer negócios na Rússia, um país onde era líder de mercado há muito tempo e gerava mais de 500 milhões de euros em vendas anuais. 2023 marca seu primeiro prejuízo em mais de 30 anos.

Nike e adidas já experimentaram grandes crises comerciais – mas não exatamente ao mesmo tempo. Em 1986, por exemplo, o excesso de estoque de Air Jordan 1 derrubou o preço do modelo. Pouco depois disso, a adidas viveu um momento difícil que a levou a uma reformulação completa, trazendo Peter Moore, que foi o primeiro diretor criativo global da Nike, e que esteve por trás de grandes projetos das Três Listras, como a linha EQT, lançada em 1991 e também o logotipo das três barras, conhecido como Mountain Logo.

Este gráfico do Financial Times ilustra a como o período da pandemia bagunçou a entrega de dividendos aos acionistas de Nike, PUMA e adidas – e como ampliou a distância entre elas – numa curva descendente para todas.

ESPAÇO PARA CRESCER

Enquanto as duas gigantes se debatem em problemas internos e externos, essa sensação negativa ganha amplitude uma vez que emana de potências, o que acaba eclipsando um movimento onde outras marcas encontram, mesmo num cenário supostamente decadente, espaço para crescer. HOKA, que tem como atual presidente Robin Green (um executivo vindo da Nike), Mizuno, Salomon, On e Veja (que por aqui chama-se Vert) ganham cada vez mais participação de mercado e clientes entusiastas, compondo um mercado cada vez mais segmentado.

Já o caso New Balance merece atenção especial, já que o faturamento de 2023 representou um aumento de 23% em relação à receita de 2022. Os números impressionam, especialmente quando comparada ao modesto crescimento de 9,6% da Nike no mesmo período. A New Balance atualmente é aquilo que se costuma chamar de sucesso de público e crítica. Ao mesmo tempo que apresenta números comerciais expressivos,a marca segue admirada pela qualidade de seus produtos e colaboradores, além da presença cada vez mais importante no esporte de alto nível.

Uma marca ainda menos conhecida, a Golden Goose viu suas receitas saltarem 18% em 2023, impulsionadas por suas 191 próprias lojas. “Nosso forte desempenho em 2023 – crescendo dois dígitos em um cenário macroeconômico desafiador – demonstra mais uma vez o poder de nossa marca e o valor de nosso pessoal, que é essencial para construir nossa visão sustentável e de longo prazo”, disse Silvio Campara, executivo da marca italiana.

“Também continuamos a ver os consumidores gravitarem em torno de novas ideias na categoria de corrida, lideradas por marcas como On, HOKA e ASICS”, disse o diretor comercial da Footlocker, um dos maiores varejistas dos EUA, Frank Bracken em teleconferência com analistas. “Continuaremos a escalar essas marcas através da expansão de portas e aumentos de alocação, bem como conectando-as aos nossos consumidores através de campanhas de marketing integradas.” Apesar da sua diversificação bem-sucedida para além da Nike, os resultados financeiros da Foot Locker foram mais fracos do que o esperado em 2023, o que levou a empresa a adiar em dois anos as suas metas de vendas de longo prazo e também iniciar o fechamento de cerca de 125 locais de baixo desempenho de sua bandeira, a Champs.

A Reebok também está de olho na corrida. “A corrida é uma categoria enorme e temos uma herança neste espaço, por isso não somos estranhos. Talvez tenhamos sido inconsistentes, mas sempre tivemos uma posição na gestão e tivemos ótimos produtos”, disse o presidente e CEO da Reebok, Todd Krinksy, à Footwear News. “O consumidor está certamente aberto a mais players do que há quatro ou cinco anos, quando mantinha as suas escolhas entre Adidas, Brooks e Nike. Eles estão abertos a marcas desafiadoras mais do que nunca e dispostos a experimentar coisas novas.” A “coisa nova” aqui é o FloatZig 1, modelo que chega em abril.

RESELLERS

Os resellers, até eles, encontram razões para reclamar. Por inúmeras razões, incluindo ganância, fluxo geracional, falta de inovação no design e dependência de clássicos que por vezes se mostram cansados. A cultura da escassez parece cada vez mais coisa do passado, e não existem mais tênis raros, pelo menos não na frequência que trazia lucros exorbitantes a cada par vendido.

Algumas das silhuetas originais mais conhecidas estão com idades entre 35 (como a família Air Max) e 50 anos (Puma Clyde, por exemplo – o adidas Superstar já caminha para a sexta década). O desafio de manter essas e outras silhuetas interessantes para uma nova geração de consumidores parece algo cada vez mais distante. Jovens não estão, definitivamente, viciados nos clássicos do passado. Como os números de produção são previstos 12 a 18 meses antes dos modelos chegarem às prateleiras, a elaboração precisa de planilhas é fundamental para marcas e varejistas, especialmente em tempos difíceis. Fabricantes e resellers vivem isso da maneira mais cara possível.

Mas resellers são…resellers. E de qualquer coisa que esteja dando lucro. Roupas elegantes, garrafas Stanley e videogames, cards, ingressos falsos. Quando o mundo dos tênis se recuperar e os lucros parecerem fáceis mais uma vez, eles sem dúvida retornarão.

OPINIÕES

Pedro Prado, sócio da Guadalupe, aponta alguns fatores que trouxeram o mercado ao ponto atual: "tem uma ressaca tardia da pandemia, onde o mercado cresceu muito e achou que o volume era maior do que realmente é." Mas, sob um prisma positivo, Pedro observa que o "tênis como símbolo cultural não perdeu relevância. A cultura que envolve esse movimento não acaba, pois está na rua, na música, no skate, no basquete. Acho que o tênis deixa de ser um objeto de desejo para quem o enxerga como commodity, pra quem acha que vai lucrar com ele - por isso a bolha da revenda talvez esteja estourando. Mas pra quem enxerga o real significado, não muda nada."

"O senso de individualidade está voltando" (Ronnie Fieg)

Ronnie Fieg, pelo X, também falou sobre o que está acontecendo, na visão de um dos mais renomados designers e um dos players mais importantes do mercado, alguém que trabalha constantemente com diversas etiquetas: “o senso de individualidade está voltando. As pessoas dirão que tudo é cíclico neste negócio e, até certo ponto, isso é verdade. Porém a internet não fazia parte de um ciclo, é algo totalmente novo, um disruptor que mudaria todas as facetas de nossas vidas. Mas com o tempo o que mais percebi é que ter todos os recursos ao seu alcance desde o nascimento tornou as pessoas muito menos curiosas.” E traça um paralelo com o mercado de tênis: “tornou-se um desafio aprender coisas novas. Ironicamente, acabo usando um pouco menos essa parte do meu cérebro, sabendo que posso obter as respostas sempre que quiser. É semelhante ao jogo de calçados. O meio/plataforma perdeu o brilho de manter as pessoas engajadas. Estou percebendo que as pessoas não querem mais que lhes digam o que gostam, elas querem gostar para si mesmas. É realmente uma espécie de renascimento. E aqui está o que é cíclico, a substância. As pessoas sempre reagirão à substância. Esta é a era que forçará as marcas a estarem alertas e a nunca considerarem o cliente garantido”.

Já para o Highnobiety, o que eles chamam de pioneiro cultural é um novo agente, talvez o substituto do influencer famoso, alguém cuja opinião já não significa um fator de decisão para as gerações mais novas. São indivíduos com mente crítica e movida por conhecimento, acreditam que a história que você conta sobre uma colaboração é tão importante quanto o produto final. Ir contra as ortodoxias da indústria nunca foi tão gratificante.

Em seu mais recente relatório, o HS aponta para uma mudança da exclusividade material (menos inclusiva) à exclusividade impulsionada pelo conhecimento e acesso (mais inclusivo), onde o cliente não é mais apenas isso. Daí pode-se entender o motivo de uma tendência por modelos mais simples, quase que desprovidos de tecnologia. A Nike está trazendo de volta o Astro Grabber e adidas Samba e Gazelle, Mexico 66 da Onitsuka Tiger e PUMA Palermo são, para muitos, boas apostas para 2024 – e encontrá-los muito provavelmente não será nenhum exercício de sorte ou paciência.

Os clientes ganharam voz, e com as redes sociais tornaram-se criadores, advogados de acusação e de defesa. O consumidor agora tem um papel ainda mais ativo na construção dos universos de suas marcas favoritas, influenciando de maneira cada vez mais direta os códigos que irão construir o culto às etiquetas.

E AGORA?

Não é morte, talvez nem renascimento. Olhando sem histeria e com alguma atenção ao contexto atual, a ocasião parece apenas uma boa hora de repensar fundamentalmente a forma como o negócio dos tênis é feito. Paixão e o negócio podem, sim, conviver em harmonia.